Salto
– Professor, o que é ser professor hoje? Ser professor atualmente é mais
complexo do que foi no passado?
Antonio Nóvoa – É difícil dizer se ser professor, na atualidade, é mais
complexo do que foi no passado, porque a profissão docente sempre foi de grande
complexidade. Hoje, os professores têm que lidar não só com alguns saberes, como
era no passado, mas também com a tecnologia e com a complexidade social,
o que não existia no passado. Isto é, quando todos os alunos vão para a escola,
de todos os grupos sociais, dos mais pobres aos mais ricos, de todas as raças e
todas as etnias, quando toda essa gente está dentro da escola e quando se
consegue cumprir, de algum modo, esse desígnio histórico da escola para todos,
ao mesmo tempo, também, a escola atinge uma enorme complexidade que não existia
no passado. Hoje em dia é, certamente, mais complexo e mais difícil ser
professor do que era há 50 anos, do que era há 60 anos ou há 70 anos. Esta
complexidade acentua-se, ainda, pelo fato de a própria sociedade ter, por
vezes, dificuldade em saber para que ela quer a escola. A escola foi um fator
de produção de uma cidadania nacional, foi um fator de promoção social durante
muito tempo e agora deixou de ser. E a própria sociedade tem, por vezes,
dificuldade em ter uma clareza, uma coerência sobre quais devem ser os
objetivos da escola. E essa incerteza, muitas vezes, transforma o professor num
profissional que vive numa situação amargurada, que vive numa situação difícil
e complicada pela complexidade do seu trabalho, que é maior do que no passado.
Mas isso acontece, também, por essa incerteza de fins e de objetivos que existe
hoje em dia na sociedade.
Salto
– Como o senhor entende a formação continuada de professores? Qual o papel da
escola nessa formação?
Antonio Nóvoa – Durante muito tempo, quando nós falávamos em formação de
professores, falávamos essencialmente da formação inicial do professor. Essa
era a referência principal: preparavam-se os professores que, depois, iam
durante 30, 40 anos exercer essa profissão. Hoje em dia, é impensável imaginar
esta situação. Isto é, a formação de professores é algo, como eu costumo
dizer, que se estabelece num continuum. Que começa nas escolas de formação
inicial, que continua nos primeiros anos de exercício profissional. Os
primeiros anos do professor – que, a meu ver, são absolutamente decisivos para
o futuro de cada um dos professores e para a sua integração harmoniosa na
profissão – continuam ao longo de toda a vida profissional, através de práticas
de formação continuada. Estas práticas de formação continuada devem ter como
pólo de referência as escolas. São as escolas e os professores organizados nas
suas escolas que podem decidir quais são os melhores meios, os melhores métodos
e as melhores formas de assegurar esta formação continuada. Com isto, eu não
quero dizer que não seja muito importante o trabalho de especialistas, o
trabalho de universitários nessa colaboração. Mas a lógica da formação
continuada deve ser centrada nas escolas e deve estar centrada numa organização
dos próprios professores.
Salto
– Que competências são necessárias para a prática do professor?
Antonio Nóvoa – Provavelmente na literatura, nos textos, nas reflexões
que têm sido feitas ao longo dos últimos anos, essa tem sido a pergunta mais
freqüentemente posta e há uma imensa lista competências. Estou a me lembrar que
ainda há 3 ou 4 dias estive a ver com um colega meu estrangeiro, justamente,
uma lista de 10 competências para uma profissão. Podíamos listar aqui um
conjunto enorme de competências do ponto de vista da ação profissional dos
professores.
Resumindo, eu tenderia a valorizar duas competências: a primeira é uma
competência de organização. Isto é, o professor não é, hoje em dia, um mero
transmissor de conhecimento, mas também não é apenas uma pessoa que trabalha no
interior de uma sala de aula. O professor é um organizador de aprendizagens, de
aprendizagens via os novos meios informáticos, por via dessas novas realidades
virtuais. Organizador do ponto de vista da organização da escola, do ponto de
vista de uma organização mais ampla, que é a organização da turma ou da sala de
aula. Há aqui, portanto, uma dimensão da organização das aprendizagens, do que
eu designo, a organização do trabalho escolar e esta organização do trabalho
escolar é mais do que o simples trabalho pedagógico, é mais do que o simples
trabalho do ensino, é qualquer coisa que vai além destas dimensões, e estas
competências de organização são absolutamente essenciais para um professor.
Há um segundo nível de competências que, a meu ver, são muito
importantes também, que são as competências relacionadas com a compreensão do
conhecimento. Há uma velha brincadeira, que é uma brincadeira que já tem quase
um século, que parece que terá sido dita, inicialmente, por Bernard Shaw, mas
há controvérsias sobre isso, que dizia que: "quem sabe faz, quem não sabe
ensina".
Hoje em dia esta brincadeira podia ser substituída por uma outra:
"quem compreende o conhecimento". Não basta deter o conhecimento para
o saber transmitir a alguém, é preciso compreender o conhecimento, ser capaz de
o reorganizar, ser capaz de o reelaborar e de transpô-lo em situação didática
em sala de aula. Esta compreensão do conhecimento é, absolutamente, essencial
nas competências práticas dos professores. Eu tenderia, portanto, a acentuar
esses dois planos: o plano do professor como um organizador do trabalho
escolar, nas suas diversas dimensões e o professor como alguém que compreende,
que detém e compreende um determinado conhecimento e é capaz de o reelaborar no
sentido da sua transposição didática, como agora se diz, no sentido da sua
capacidade de ensinar a um grupo de alunos.
Salto
– O que é ser professor pesquisador e reflexivo? E, essas capacidades são
inerentes à profissão do docente?
Antonio Nóvoa – O paradigma do professor reflexivo, isto é, do professor que
reflete sobre a sua prática, que pensa, que elabora em cima dessa prática é o
paradigma hoje em dia dominante na área de formação de professores. Por vezes é
um paradigma um bocadinho retórico e eu, um pouco também, em jeito de
brincadeira, mais de uma vez já disse que o que me importa mais é saber como é
que os professores refletiam antes que os universitários tivessem decidido que
eles deveriam ser professores reflexivos. Identificar essas práticas de
reflexão – que sempre existiram na profissão docente, é impossível alguém
imaginar uma profissão docente em que essas práticas reflexivas não existissem
– tentar identificá-las e construir as condições para que elas possam se
desenvolver.
Eu diria que elas não são inerentes à profissão docente, no sentido de serem
naturais, mas que elas são inerentes, no sentido em que elas são essenciais
para a profissão. E, portanto, tem que se criar um conjunto de condições, um
conjunto de regras, um conjunto de lógicas de trabalho e, em particular, e eu
insisto neste ponto, criar lógicas de trabalho coletivos dentro das
escolas, a partir das quais – através da reflexão, através da troca de
experiências, através da partilha – seja possível dar origem a uma
atitude reflexiva da parte dos professores. Eu disse e julgo que vale a pena
insistir nesse ponto.
A experiência é muito importante, mas a experiência de cada um só se
transforma em conhecimento através desta análise sistemática das práticas. Uma
análise que é análise individual, mas que é também coletiva, ou seja,
feita com os colegas, nas escolas e em situações de formação.
Salto
– E o professor pesquisador?
Antonio Nóvoa – O professor pesquisador e o professor reflexivo, no
fundo, correspondem a correntes diferentes para dizer a mesma coisa. São nomes
distintos, maneiras diferentes dos teóricos da literatura pedagógica abordarem
uma mesma realidade. A realidade é que o professor pesquisador é aquele que
pesquisa ou que reflete sobre a sua prática. Portanto, aqui estamos dentro do
paradigma do professor reflexivo. É evidente que podemos encontrar dezenas de
textos para explicar a diferença entre esses conceitos, mas creio que, no
fundo, no fundo, eles fazem parte de um mesmo movimento de preocupação com um
professor que é um professor indagador, que é um professor que assume a sua
própria realidade escolar como um objeto de pesquisa, como objeto de reflexão,
com objeto de análise. Mas, insisto neste ponto, a experiência por si só não é
formadora. John Dewey, pedagogo americano e sociólogo do princípio do século,
dizia: "quando se afirma que o professor tem 10 anos de experiência, dá
para dizer que ele tem 10 anos de experiência ou que ele tem um ano de
experiência repetido 10 vezes". E, na verdade, há muitas vezes esta idéia.
Experiência, por si só, pode ser uma mera repetição, uma mera rotina, não é ela
que é formadora. Formadora é a reflexão sobre essa experiência, ou a pesquisa
sobre essa experiência.
Salto
– A sociedade espera muito dos professores. Espera que eles gerenciem o seu
percurso profissional, tematizem a própria prática, além de exercer sua prática
pedagógica em sala de aula. Qual a contrapartida que o sistema deve oferecer
aos professores para que isso aconteça?
Antonio Nóvoa – Certamente, nas entrelinhas da sua pergunta, há essa
dimensão. Há hoje um excesso de missões dos professores, pede-se demais aos
professores, pede-se demais as escolas. As escolas, talvez, resumindo numa
frase (...), as escolas valem o que vale a sociedade. Não podemos imaginar
escolas extraordinárias, espantosas, onde tudo funciona bem numa sociedade onde
nada funciona. Acontece que, por uma espécie de um paradoxo, as coisas que não
podemos assegurar que existam na sociedade, nós temos tendência a projetá-las
para dentro da escola e a sobrecarregar os professores com um excesso de
missões. Os pais não são autoritários, ou não conseguem assegurar a autoridade,
pois se pede ainda mais autoridade para a escola. Os pais não conseguem
assegurar a disciplina, pede-se ainda mais disciplina a escola. Os pais
não conseguem que os filhos leiam em casa, pede-se a escola que os filhos
aprendam a ler. É legítimo eles pedirem sobre a escola, a escola está lá para
cumprir uma determinada missão, mas não é legítimo que sejam uma espécie de
vasos comunicantes ao contrário. Que cada vez que a sociedade tem menos
capacidade para fazer certas coisas, mais sobem as exigências sobre a
escola.
E isto é um paradoxo absolutamente intolerável e tem criado para os
professores uma situação insustentável do ponto de vista profissional,
submetendo-os a uma crítica pública, submetendo-os a uma violência simbólica
nos jornais, na sociedade, etc. o que é absolutamente intolerável. Eu creio que
os professores podem e devem exigir duas coisas absolutamente essenciais que
são:
·
Uma, é calma e tranquilidade para o exercício do seu trabalho, eles
precisam estar num ambiente, eles precisam estar rodeados de um ambiente
social, precisam estar rodeados de um ambiente comunitário que lhes permita essa
calma e essa tranquilidade para o seu trabalho. Quer dizer, não é possível
trabalhar pedagogicamente no meio do ruído, no meio do barulho, no meio da
crítica, no meio da insinuação. É absolutamente impossível esse tipo de
trabalho. As pessoas têm que assegurar essa calma e essa tranquilidade.
·
E, por outro lado, é essencial ter condições de dignidade profissional.
E esta dignidade profissional passa certamente por questões materiais, por
questões do salário, passa também por boas questões de formação, e passa por
questões de boas carreiras profissionais. Quer dizer, não é possível imaginar
que os professores tenham condições para responder a este aumento absolutamente
imensurável de missões, de exigências no meio de uma crítica feroz, no meio de
situações intoleráveis, de acusação aos professores e às escolas.
Eu creio que há, para além dos aspectos sociais de que eu falei a pouco
– e que são aspectos extremamente importantes, porque no passado os professores
não tiveram, por exemplo, os professores nunca tiveram situações materiais e
econômicas muito boas, mas tinham prestígio e uma dignidade social que, em
grande parte completavam algumas dessas deficiências – para além desses
aspectos sociais de que eu falei a pouco e que são essenciais para o professor
no novo milênio, neste milênio que estamos, eu creio que pensando internamente
a profissão, há dois aspectos que me parecem essenciais. O primeiro é que os
professores se organizem coletivamente – e esta organização coletiva não passa
apenas, eu insisto bem, apenas pelas tradicionais práticas associativas e
sindicais – passa também por novos modelos de organização, como comunidade
profissional, como coletivo docente, dentro das escolas, por grupos
disciplinares e conseguirem deste modo exercer um papel com profissão, que é
mais ampla do que o papel que tem exercido até agora. As questões dos
professorado enquanto coletivo parecem-me essenciais. Sem desvalorizar as
questões sindicais tradicionais, ou associativas, creio que é preciso ir mais
longe nesta organização coletiva do professorado.
O segundo ponto – e que tem muito a ver também com formação de
professores – passa pelo que eu designo como conhecimento profissional. Isto é,
há certamente um conhecimento disciplinar que pertence aos cientistas, que pertence
às pessoas da história, das ciências, etc., e que os professores devem de ter.
Há certamente um conhecimento pedagógico que pertence, às vezes, aos pedagogos,
às pessoas da área da educação que os professores devem de ter também. Mas,
além disso há um conhecimento profissional que não é nem um conhecimento
científico, nem um conhecimento pedagógico, que é um conhecimento feito na
prática, que é um conhecimento feito na experiência, como dizia há pouco, e na
reflexão sobre essa experiência.
A valorização desse conhecimento profissional, a meu ver, é essencial para os
professores neste novo milênio. Creio, portanto, que minha resposta passaria
por estas duas questões: a organização como comunidade profissional e a
organização e sistematização de um conhecimento profissional específico dos
professores.
Salto
– O senhor diz em um texto que a sua intenção é olhar para o presente dos
professores, identificando os sentidos atuais do trabalho educativo. Em relação
ao Brasil o que o senhor vê: o que já avançou na formação dos professores
brasileiros e o que ainda precisa avançar?
Antonio Nóvoa – É muito difícil para mim e nem seria muito correto estar
a tecer grandes considerações sobre a realidade brasileira. Primeiro porque é
uma realidade que, apesar de eu cá ter vindo algumas vezes, que eu conheço
ainda mal, infelizmente, espero vir a conhecer melhor e, por outro lado, porque
não seria (...) da minha parte tecer grandes considerações sobre isso. No
entanto, eu julgo poder dizer duas coisas. A primeira é que os debates que há
no Brasil sobre formação de professores e sobre a escola são os mesmos debates
que se tem um pouco por todo mundo. Quem circula, como eu circulo, dentro dos
diversos países europeus, na América do Norte e outros lugares, percebe que
estas questões, as questões que nos colocam no final das palestras, as
perguntas que nos fazem são, regra geral, as mesmas de alguns países para os
outros. Não há, portanto, uma grande especificidade dos fatos travados no
Brasil em relação a outros países do mundo e, em particular, em relação a
Portugal. Creio que houve, obviamente, avanços enormes na formação dos
professores nos últimos anos, mas houve também grandes contradições. E a
contradição principal que eu sinto é que se avançou muito do ponto de vista da
análise teórica, se avançou muito do ponto de vista da reflexão, mas se avançou
relativamente pouco das práticas da formação de professores, da criação e da
consolidação de dispositivos novos e consistentes de formação de professores. E
essa decalagem entre o discurso teórico e a prática concreta da formação de
professores é preciso ultrapassá-la e ultrapassá-la rapidamente. Devo dizer, no
entanto, também, que se os problemas são os mesmos, se as questões são as
mesmas, se o nível de reflexão é o mesmo, eu creio que a comunidade científica
brasileira está ao nível das comunidades científicas ou pedagógicas dos outros
países do mundo. Se essas realidades são as mesmas é evidente que há um nível,
que eu diria, um nível material, um nível de dificuldades materiais, de
dificuldades materiais nas escolas, de dificuldades materiais relacionadas com
os salários dos professores, de dificuldades materiais relacionadas com as
condições das instituições de formação de professores que são, provavelmente,
mais graves no Brasil do que em outros países que eu conheço. Terão aqui,
evidentemente, problemas que têm a ver com as dificuldades históricas de
desenvolvimento da escola no Brasil e das escolas de formação de professores e
que, portanto, é importante enfrentá-los e enfrentá-los com coragem e
enfrentá-los de forma não ingênua, mas também de forma não derrotista. Creio,
por isso, que devemos perceber que no Brasil, como nos outros países, as
perguntas são as mesmas, as nossas empolgações são as mesmas, mas é verdade que
há aqui por vezes dificuldades que eu chamaria de ordem material, maiores do
que as existem em outros países e que é absolutamente essencial que com a vossa
capacidade de produzir ciência, com a vossa capacidade de fazer escola e com a
vossa capacidade de acreditar como educadores possam ultrapassar essas
dificuldades nos próximos anos. E esses são, sinceramente, os meus desejos e na
medida que meu contributo, pequeno que ele seja, possa ser dado, podem,
evidentemente, contar comigo para essa tarefa.